sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

Depois de longo e frio verão

Depois de bastante tempo ausente (crises mil) voltei. Estava no trabalho, brincando entre matérias e saiu isso. Como estive muito distante, decidi postar do jeito que saiu! 1ª versão! Com erros e tudo!

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Crepúsculo dos diabos



Todos os dias eles se encontravam no crepúsculo. As gotas de orvalho pingavam no exato ritmo do farfalhar das árvores. O gongo – tido por muitos como amaldiçoado, soou uma, duas, três, quatro vezes, mas ninguém parecia prestar atenção. Ninguém a não ser o homem barrigudo que batia incessantemente, porém a duras penas, o velho instrumento.

Alice, vestida de azul, não era nenhuma ninfa em ritual nórdico, mas, como sempre, estava bela. Com o olhar rápido ela olhava um a um os homens que se aproximavam da roda e, sem ouvir os gongos, mantinha sua gargalhada em alto e bom som para todos ouvirem.

A roda aumentava a cada segundo que passava, mas nenhuma das pessoas fazia menção de ouvir o gongo que anunciava a chegada de Felipe. Como sempre, o mandante do séqüito aparecia sorrateiro e sem se anunciar. Também ele fazendo pouco caso do homem barrigudo, cuja única função era tocar o poderoso instrumento de estanho.

Dessa vez, Alice estava decidida: não sairia de lá sem ao menos beijar os pés de Felipe, mesmo que seu ato a deixasse manchada para sempre frente aos outros pretendentes. E não eram poucos os que idolatravam a menina envolta na renda azul. Havia outras, igualmente belas, com suas rendas vermelhas, amarelas e laranjas. Mas, nenhuma outra tinha o ar indulgente e os olhos violáceos da menina Alice. Nos círculos íntimos e burburinhos, todos os rapazes, homens e velhos se referiam a ela como a Fada-azul. Sempre, desde os dez anos, Alice portava uma renda azul. Fosse turquesa ou Royal, a renda que cobria seu corpo nu, era azul.

Com os peitinhos espevitados e a cintura fina, cobertos apenas com a delicada renda, Alice desfilava entre todos, aguardando ansiosa a chegada de Felipe que jamais respeitara os horários das convenções. Ora, ele não precisava disso – era o grande Felipe. Aquele que combateu o mal eclesiástico e conseguiu o acordo com as trevas.

Temido e adorado, ninguém jamais chegaria perto dele ou ousaria contestar seus atrasos ou entradas sem anunciação. Porém, a menina Alice, a Fada-azul, ela sim. Envolta em renda e em teimosia, com os seios nus e o púbis jovem e casto, ela subiria ao altar de toras empilhadas e tocaria com as suas mãos brancas os pés de Felipe.

No mesmo instante em que aves revoavam a clareira, homens dançavam e vislumbravam as mulheres-de-renda que caminhavam e, secretamente sonhavam com o toque da menina Alice. No mesmo instante em que aves revoavam a clareira, ele chegou desapercebido. Até o gongo permaneceu na mesma melodia monótona, sem se dar conta da necessidade de seu próprio silêncio. Todos continuavam com suas tarefas de homens e mulheres em festa e acasalamento, sem notar, os passos firmes, porém sorrateiro do temido e adorado Felipe.

Em toda sua certeza e prontidão, Felipe hasteou os braços, pigarreou, calou o gongo, imobilizou os homens, fez pousar as aves, encantou as mulheres que tímidas se cobriram com as rendas e esbravejou seu comando de silêncio absoluto. Não se ouvia nem um paço, nem um farfalhar se quer, nem uma única respiração.

Com os olhos fechados Felipe passou a percorrer as sílabas do seu próprio cântico, embevecendo os presentes de sedução e luxúria. Pouco a pouco, os presentes entoavam palavras de sexo e sentiam os perfumes de seus pares. Como em transe, as mulheres despiam-se das rendas e se davam braços cobertos dos homens. Entre si as mulheres se baixavam e acariciavam os sexos. O perfume corria e Felipe se sentia feliz. Ah. Se ao menos ele mesmo pudesse, pensou.

Quando os afagos cresciam ou os homens faziam menção de atacar as fêmeas que rodopiavam na clareira da luxúria, o gongo soava para alerta-los do início dos tempos que desautorizava o fim no leito.

Alice, como virgem que era, era tida com mais cuidado, cercada pela sua corja de homens e mulheres que idolatravam seu corpo jovem. Como o calor era muito grande e a vontade cada vez maior, os machos se alternavam ao redor da Fada-azul, fugindo para se refrescarem e temendo, por descuido, romperem seu mais precioso encanto.

Aproveitando um dos raros momentos que foi deixada sozinha, Alice caminhou em direção ao altar de toras. O homem barrigudo, concentrado no gongo que novamente soava, nem notou que menina se dispersara dos demais. Todos, entretidos em seios, nádegas e costelas ludibriadas pela própria luxúria, nem por um instante conceberam sua adorada ausência.

A passos rápidos, aproveitando o transe coletivo e os olhos cerrados de Felipe, ela subiu nas toras, agachou-se e tocou a túnica de Felipe. Assustada, nem deu tempo do mestre reagir, agarrou a faca jogada na mesa e o apunhalou. Em menos de dois minutos de silêncio tétrico, Felipe não mais respirou. No auge dos seus 15 anos, Alice se levantou, manchada de sangue e disse à multidão atônita:

- Sabem porque jamais o tocamos? Sabem porque Felipe me ofertou aos Deuses, condenada a jamais tornar-me mulher? Sabem porque vocês, almas infelizes, jamais conseguirão culminar seus desejos e tomar uns aos outros verdadeiramente? Sabe porque só nos acariciamos, beijamos e tocamos? Sabem porquê vocês homens andam vestidos?

Movida pelo próprio desejo e sangue vivo e pulsante, Alice levantou o corpo de Felipe. Com uma mão o apoiava no ombro e com a outra levantou a bata que ele portava. Para o espanto e absoluta compreensão de todos, o mestre era eunuco.