quarta-feira, 5 de março de 2008

Mais palavras...

....para um grande e velho amigo, desejando boa sorte na defesa do mestrado.


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Idolatria


Sérgio Faraco

Eu olhava para a estrada e tinha a impressão de que jamais na vida chegaríamos a Nhuporã. Que pedaço brabo. O camaleão se esfregava no chassi e o pai praguejava:


— Caminho do diabo!


Nosso Chevrolet era um trinta e oito de carroceria verde-oliva e cabina da mesma cor, só um nadinha mais escura. No pára-choque havia uma frase sobre amor de mãe e em cima da cabina uma placa onde o pai anunciava que fazia carreto na cidade, fora dela e ele garantia, de boca, que até fora do estado, pois o Chevrolet não se acanhava nas estradas desse mundo de Deus.


Mas o caminho era do diabo, ele mesmo tinha dito. A pouco mais de légua de Nhuporã o caminhão derrapou, deu um solavanco e tombou de ré na valeta. O pai acelerou, a cabina estremeceu. Ouvíamos os estalos da lataria e o gemido das correntes no barro e na água, mas o caminhão não saiu do lugar. Ele deu um murro no guidom.

— Puta merda.


Quis abrir a porta, ela trancou no barranco.


— Abre a tua.


A minha também trancava e ele se arreliou:


— Como é, ô Moleza!


Empurrou-a com violência.


— Me traz aquelas pedras. E vê se arranca um feixe de alecrim, anda.


Agachou-se junto às rodas e começou a fuçar, jogando grandes porções de barro para os lados. Mal ele tirava, novas porções vinham abaixo, afogando as rodas. Com a testa molhada, escavava sem parar, suspirando, praguejando, merda isso e merda aquilo, e de vez em quando, com raiva, mostrava o punho para o caminhão.


O pai era alto, forte, tinha o cabelo preto e o bigode espesso. Não era raro ele ficar mais de mês em viagem e nem assim a gente se esquecia da cara dele, por causa do nariz, chato como o de um lutador. Bastava lembrar o nariz e o resto se desenhava no pensamento.


— Vamos com essas pedras!


Por que falava assim comigo, tão danado? As pedras, eu as sentia dentro do peito, inamovíveis.


— Não posso, estão enterradas.


— Ah, Moleza.


Meteu as mãos na terra e as arrancou uma a uma. Carreguei-as até o caminhão, enquanto ele se embrenhava no capinzal para pegar o alecrim.


— Pai, pai, o caminhão tá afundando!


A cabeça dele apareceu entre as ervas.


— Não vê que é a água que tá subindo, ô pedaço de mula?


E riu. Ficava bonito quando ria, os dentes bem parelhos e branquinhos.


— Tá com fome?


— Não.


— Vem cá.Tirou do bolso uma fatia de pão.


— Toma.


— Não quero.


— Toma logo, anda.


— E tu?


— Eu o quê? Come isso.


Trinquei o pão endurecido. Estava bom e minha boca se encheu de saliva.


— Acho que não vamos conseguir nada por hoje. De manhãzinha passa a patrola do DAER*, eles puxam a gente.Atirou a erva longe e entrou na cabina.


— Ô Moleza, vamos tomar um chimarrão?


Fiz que sim. Ao me aproximar, ele me jogou sua japona.


— Veste isso, vai esfriar.


A japona me dava nos joelhos e ele riu de novo, mostrando os dentes.


— Que bela figura.


A cara dele era tão boa e tão amiga que eu tinha uma vontade enorme de me atirar nos seus braços, de lhe dar um beijo. Mas receava que dissesse: como é, Moleza, tá ficando dengoso? Então agüentei firme ali no barro, com as abas da japona me batendo nas pernas, até que ele me chamou outra vez:


— Como é, vens ou não?


Aí eu fui.



*Sigla do departamento responsável pela conservação das estradas estaduais.

terça-feira, 4 de março de 2008

páginas, páginas


Ontem, como presente de aniversário , ganhei o livro do escritor africano Ruy Duarte de Carvalho. Me apaixonei. No início ainda, mas, em breve, hei de relatar novas passagens. Abaixo, um "verbete" de "Actas da Maianga ...dizer das guerras, em angola..."


"Dizer ou não

...A questão do inglório destino de certos livros que jamais chegarão a sê-lo porque o título, pensado à exaustão, acaba por condensar e cristalizar, na feição de um sucinto tracto escrito, tudo quanto haveria para dizer...Só que neste caso não se trataria apenas disso..."