quarta-feira, 24 de outubro de 2007

auto-crítica ou a leoa

Ainda não escrevi neste diário virtual sobre aquilo que "estou lendo". Há alguns dias comecei a enfrentar o romance "Juventude", do Coetzee. Escrevo a palavra enfrentar, pois desde que entrei em contato com o livro, logo na primeira página, me vi acometida de uma súbita aflição que tem se traduzido, diariamente, como uma náusea constante e presente.

Em uma África do Sul marcada pelo apartheid, há um jovem rapaz que, com toda sua "brancura" se vê sem pátria em uma época pré-revolucionária, onde as milícias celebram assassinatos, prisões e violências diária. John, esse moço, parte para Londres na tentativa de escapar da sua não-identidade, tornando-se aquilo que sempre sonhou ser: um poeta. Na mímese de grandes artistas, ele quer uma grande paixão: uma mulher que reconheça a arte que, segundo ele, há dentro de sua mente e presa no seu corpo de estrangeiro mal ajambrado.

Entre idas e vindas ele segue seu rumo por um emprego indigesto na IBM. Emprego que no momento da leitura em que me encontro (quase no final) ele acabou de largar para então se dedicar completamente à poesia, ou à prosa, embora ele considere esta segunda uma arte menor.

A ânsia que me vem e o constante sufocamento que me pego a cada nova linha lida, me leva a reconhecer como sou próxima deste garoto pedante que realmente acredita ser um poeta não compreendido. Me vejo assim, traduzida na mesma sensação de impossibilidade de ser, na permanência daquilo que não é e que busca pedaços de outros para se completar.

Estou com cada vez mais dificuldade de terminar o relato de Coetzee. Talvez porque esteja com medo de assistir a uma projeção do meu próprio futuro, enfadonho, comprometido e com tão pouca arte presente.





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Um trecho de Juventude, de Coetzee:



"Leva um livro de poesia no bolso, às vezes Hölderlin, às vezes Rilke, às vezes Vallejo. No trem, tira ostensivamente do bolso o livro e se absorve nele. É um teste. Só uma garota excepcional apreciaria o que está lendo e reconheceria nele um espírito excepcional também. Mas nenhuma garota nos trens presta atenção nele. Isso parece ser uma das primeiras coisas que as garotas aprendem quando chegam à Inglaterra: não prestar atenção nos sinais dos homens."





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Por fim, uma besteirinha que escrevi há pouco...


Cotidiano de sol

Calada
na relva uma leoa espreita
quer sangue.
O cheiro do filhote,
o macho ali, deitado e sempre incapaz.
Vergonhoso, pensa ela aos bocejos.
Lá vai, caça uma lebre, com sorte uma zebra.
Arranca o couro e dá na boca da cria
uma pata, um rabo, quiçá uma costela.
Feliz, vê o chefe do bando se esbaldar de intestinos, estômago e músculo.
O resto é dos urubus,
e a ela, a presença infeliz do maldito cheiro de sangue.
Falta amamentar, pensa.
Uma lambida, dois banhos e uma nova caçada se anuncia.

3 bocejos:

Flávia Santos disse...

deixo o Manoel e as coisa de desapreender dele:



O Livro sobre Nada

Manoel de Barros


Com pedaços de mim eu monto um ser atônito.

Tudo que não invento é falso.

Há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira.

Não pode haver ausência de boca nas palavras: nenhuma fique desamparada do ser que a revelou.

É mais fácil fazer da tolice um regalo do que da sensatez.

Sempre que desejo contar alguma coisa, não faço nada; mas se não desejo contar nada, faço poesia.

Melhor jeito que achei para me conhecer foi fazendo o contrário.

A inércia é o meu ato principal.

Há histórias tão verdadeiras que às vezes parece que são inventadas.

O artista é um erro da natureza. Beethoven foi um erro perfeito.

A terapia literária consiste em desarrumar a linguagem a ponto que ela expresse nossos mais fundos desejos.

Quero a palavra que sirva na boca dos passarinhos.

Por pudor sou impuro.

Não preciso do fim para chegar.

De tudo haveria de ficar para nós um sentimento longínquo de coisa esquecida na terra —

Flávia Santos disse...

coisas*

Isabela disse...

Se vc não se afligisse teria o que escrever? Rs...
Tem um tempinho que eu não passo neste canto...