sexta-feira, 31 de agosto de 2007

O roubo das rosas



Dedico o mito do roubo das rosas a uma amiga que também anda nesses caminhos virtuais. É genial pensar como Clarice transcreve a escolha de aceitar ou não a feminilidade. O desejo que passa a nascer na jovem menina, que cresce e se expande a ponto de fazê-la aceitar a rosa e então, picar o dedo no espinho e sangrar. O conteúdo do escrito clariciano é tão puro que faz eu me questionar se deveria ou não estar escrevendo. Afinal, ela é absolutamente insuperável.

Ela, e tantos outros. Preciso voltar às páginas do Rilke.





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Cem anos de Perdão está no Felicidade Clandestina, e no Para Gostar de Ler n.9.

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"CEM ANOS DE PERDÃO



Quem nunca roubou não vai me entender. E quem nunca roubou rosas, então é que jamais poderá me entender. Eu, em pequena, roubava rosas.

Havia em Recife inúmeras ruas, as ruas dos ricos, ladeadas por palacetes que ficavam no centro de grandes jardins. Eu e uma amiguinha brincávamos muito de decidir a quem pertenciam os palacetes.
"Aquele branco é meu." "Não, eu já disse que os brancos são meus." Parávamos às vezes longo tempo, a cara imprensada nas grades, olhando.

Começou assim. Numa dessas brincadeiras de "essa casa é minha", paramos diante de uma que parecia um pequeno castelo. No fundo via-se o imenso pomar. E, à frente, em canteiros bem ajardinados, estavam plantadas as flores.

Bem, mas isolada no seu canteiro estava uma rosa apenas entreaberta cor-de-rosa-vivo. Fiquei feito boba, olhando com admiração aquela rosa altaneira que nem mulher feita ainda não era. E então aconteceu: do fundo de meu coração, eu queria aquela rosa para mim. Eu queria, ah como eu queria.
E não havia jeito de obtê-la. Se o jardineiro estivesse por ali, pediria a rosa, mesmo sabendo que ele nos expulsaria como se expulsam moleques. Não havia jardineiro à vista, ninguém. E as janelas, por causa do sol, estavam de venezianas fechadas. Era uma rua onde não passavam bondes e raro era o carro que aparecia. No meio do meu silêncio e do silêncio da rosa, havia o meu desejo de possuí-la como coisa só minha. Eu queria poder pegar nela. Queria cheirá-la até sentir a vista escura de tanta tonteira de perfume.

Então não pude mais. O plano se formou em mim instantaneamente, cheio de paixão. Mas, como boa realizadora que eu era, raciocinei friamente com minha amiguinha, explicando-lhe qual seria o seu papel: vigiar as janelas da casa ou a aproximação ainda possível do jardineiro, vigiar os transeuntes raros na rua. Enquanto isso, entreabri lentamente o portão de grades um pouco enferrujadas, contando já com o leve rangido. Entreabri somente o bastante para que meu esguio corpo de menina pudesse passar. E, pé ante pé, mas veloz, andava pelos pedregulhos que rodeavam os canteiros. Até chegar à rosa foi um século de coração batendo.

Eis-me afinal diante dela. Para um instante, perigosamente, porque de perto ela é ainda mais linda. Finalmente começo a lhe quebrar o talo, arranhando-me com os espinhos, e chupando o sangue dos dedos.

E, de repente - ei-la toda na minha mão. A corrida de volta ao portão tinha também de ser sem barulho. Pelo portão que deixara entreaberto, passei segurando a rosa. E então nós duas pálidas, eu e a rosa, corremos literalmente para longe da casa.

O que é que fazia eu com a rosa? Fazia isso: ela era minha.

Levei-a para casa, coloquei-a num copo d'água, onde ficou soberana, de pétalas grossas e aveludadas, com vários entretons de rosa-chá. No centro dela a cor se concentrava mais e seu coração quase parecia vermelho.

Foi tão bom.

Foi tão bom que simplesmente passei a roubar rosas. O processo era sempre o mesmo: a menina vigiando, eu entrando, eu quebrando o talo e fugindo com a rosa na mão. Sempre com o coração batendo e sempre com aquela glória que ninguém me tirava.

Também roubava pitangas. Havia uma igreja presbiteriana perto de casa, rodeada por uma sebe verde, alta e tão densa que impossibilitava a visão da igreja. Nunca cheguei a vê-la, além de uma ponta de telhado. A sebe era de pitangueira. Mas pitangas são frutas que se escondem: eu não via nenhuma. Então, olhando antes para os lados para ver se ninguém vinha, eu metia a mão por entre as grades, mergulhava-a dentro da sebe e começava a apalpar até meus dedos sentirem o úmido da frutinha. Muitas vezes na minha pressa, eu esmagava uma pitanga madura demais com os dedos que ficavam como ensangüentados. Colhia várias que ia comendo ali mesmo, umas até verdes demais, que eu jogava fora.

Nunca ninguém soube. Não me arrependo: ladrão de rosas e de pitangas tem 100 anos de perdão. As pitangas, por exemplo, são elas mesmas que pedem para ser colhidas, em vez de amadurecer e morrer no galho, virgens."






quarta-feira, 29 de agosto de 2007

Êxodo dos fantasmas, das coisas translúcidas e das teias

Não está terminado, mas ele (o poema) praticamente "se postou" sozinho. Acho que precisava exorcizá-lo porque aqui, escrito no caderno, ele olha para mim como se contestasse quem sou.

Alguns personagens tendem a me perseguir: a espreitar assim, quietinhos, meu cotidiano para então denunciá-lo a todos os cantos, a todas as teias e a todas as moscas, aguardando enfim a chegada de uma aranha grande e triste.



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Suspiro

Se todos falassem tua língua
Beberias teu próprio veneno
Comerias tua fruta finita
E andarias assim tão pequeno.

Não mais denunciarias meus beijos.
Ardilosos seriam os outros,
Engrandecidos pela tua pequenez,
Convencidos de não serem mais ogros

Ah. Se ao menos roubassem tua força,
Eu seria virgem novamente,
Amaria, me deitaria não importa onde
E tu sofrerias como uma moça frágil



(Que hoje sou eu)


Se matassem todos teus sonhos
E aniquilassem teus comandos
Eu seria eu mesma, sem roubos.
Finalmente livre e feliz.






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segunda-feira, 20 de agosto de 2007

Todo dia ela faz tudo sempre igual, ...


Fim na metrópole

As cordas vocais metálicas
A respiração ofegante
Que não faz fotossíntese
Afônicas, as risadas ainda estáticas
O sobressalto!
Novas ordens no alto-falante
Apoiado nas gigantes construções fálicas
Os cheiros e odores
Misturados à ausência pulmonar
Correm barrigas e umbigos
Apressados na esperança de cedo chegar

Cabe o desejo de falar com aquele?
-Pode não!, responde mais um
Excluído condutor
-Tens vontade de passar adiante?
- Porquê?, pergunta irritado
Alguém preso no instante.

Sobre a fome de cores,
Se reúnem todos no cinza
O sexo ardil; janela fechada
É melhor evitar o olhar voyeurista

Na manhã mais uma seqüência
Passos apressados e a mesma turbulência
Um revólver na mão da senhora
Um beijo não dado, o adeus
O gosto de jaca dura no fim da tarde
E a lembrança de correr lá fora.
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Posto uma tentativa diferente; algo fora da temática introspectiva-jovem mulher - angústia. Embora, dou uma pequena dica "autoral", continue presente a figura do feminino. Ora como metrópole, ora como senhora, sempre como assassina.
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quarta-feira, 1 de agosto de 2007

Democratização do ego

Um daqueles dias de inverno: o frio interno e a banheira. Deixo apenas um poema antigo, inacabado, não-corrigido, mas que de alguma forma, precisa aparecer no meu universo virtual. Universo este, cada vez mais exposto. Presente e identificando cada pedaço da minha persona, ou personas. Já que são várias...todas aí (ou aqui) tolas, se mostrando verdadeiras como partes de mim. Nossa...ego na internet...maravilhas do mundo moderno...democratizar a informação inútil da terapia pessoal...Maravilha!



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Canto passado

A camisa desabotoava sozinha,
o pé direito insistindo em se contorcer.
Na falta da cama, o batente
segurava o corpo.
Teu sussurro repetia o verbete ‘você’
O ventre doía
Tuas mãos trêmulas
abafavam o som da cômoda
que rangia.
Os suspiros calados,
os murmúrios torpes
ao alcance de todos
Mantinham-se únicos,
privados.
Éramos tão tolos!
O beijo tímido,
a vestimenta recomposta.
Abria-se a porta e
O grito da mãe avisava o fim do amor:
A mesa estava finalmente posta.